Augusto espírita?, por Milton Marques Júnior – Portal Espiritismo com Kardec – ECK

Augusto Espírita?

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A partir dos questionamentos suscitados pelo amigo Germano Romero, tomamos a decisão de esclarecer, mais uma vez, a nossa posição a respeito da espiritualidade em Augusto dos Anjos, em cuja poesia podemos constatar alguns procedimentos semelhantes aos encontrados no Espiritismo.

Gostaríamos de afirmar, inicialmente, que, do ponto de vista literário, é irrelevante saber se Augusto dos Anjos era ou não espírita. Mais relevante é verificar como elementos da doutrina espírita foram utilizados de modo literário. Dizendo claramente, temos na obra de Augusto dos Anjos uma póiesis, em que se pode identificar algo de um Espiritismo subjacente, mas não uma doutrina espírita, na qual se pode identificar uma póiesis incidental.

Muitos escritores procederam de modo semelhante. É o que constatamos em Léon Tolstói, no grandioso Guerra e Paz – apesar de tê-lo lido em tradução, o que nos traz um certo receio –, mesmo não conseguindo entrever a possibilidade de um tradutor ter “criado” o que existe naquela obra, sobretudo nos momentos da morte do príncipe Andrei Bolkónski. Remetemos o leitor para o texto Apelo à vida, publicado no Ambiente de Leitura Carlos Romero.

Com relação a Victor Hugo, a situação já se torna mais favorável, tendo em vista o fato de termos lido, no original, o magnífico Os Miseráveis. Das atitudes do bispo de Digne, Monsenhor Myriel Bienvenu – que remete, em certa forma, a um Victor Hugo espírita –, acreditando no perdão e na força do amor, às transformações por que Jean Valjean passa, buscando a redenção a partir desse perdão, desse amor e, sobretudo, da caridade – que salvaria a vida de seu algoz, mesmo correndo o risco de retornar à cadeia, mesmo sendo inocente –, tudo nos conduz a uma compreensão da visão espírita presente no romance, de um dos homens mais libertários de todos os tempos, que combate e age, com risco da própria vida, contra o arbítrio, a prepotência e a violência. Não fosse o que se encontra em Os Miseráveis – o maior libelo contra a injustiça que há na face da terra –, teríamos uma prova documental da participação de Victor Hugo nas experiências das mesas girantes, ao longo de 2 anos (1853-1855), no exílio, transformadas em livro póstumo, Le Livre des tables: les séances spirites de Jersey, cujos 4 cadernos foram editados pela primeira vez, em 2014, pela Gallimard.

A respeito de Augusto dos Anjos, dispomos de, ao menos, uma prova documental: Ademar Vidal atesta que o poeta realizava, no Pau d’Arco, sessões espíritas (O outro eu de Augusto dos Anjos, Rio de Janeiro, José Olympio, 1967, p. 69-70):

“Nesse meio agitado [o meio católico do engenho], Augusto dos Anjos chegou a praticar o espiritismo. Promovia ‘sessões memoráveis’ na sala de jantar. Era ‘médium’ classificado. Certa vez invocaram Gonçalves Dias que escreveu versos sobre os quais ninguém punha a menor dúvida como da autoria do lírico maranhense. Nessa época o pessoal do Pau d’Arco foi assaltado por grandes medos decorrentes de assombração. Eram as consequências de espíritos maus que surgiam nas ‘sessões’ em manifestação de violência. […]

As sessões espíritas estavam trazendo sérios transtornos à pacatez do ambiente. Já se ouviam ruídos estridentes, bastando para tanto que entrasse a noite, esta viesse com as suas escuridões e mistérios, ventos frios de junho. Diante disso, Dona Mocinha resolveu proibir as ‘sessões’, visto o espiritismo estar perturbando a vida da casa-grande. Com a proibição, cessou a onda de pavores – os trasgos não andaram mais soltos no terreiro – que vinham dando rebuliços às noites silenciosas do velho engenho de açúcar.”

Embora seja um testemunho de alguém que conviveu com Augusto dos Anjos, precisamos ter muito cuidado para usar essa informação. Ser espírita envolve mais do que realizar uma sessão mediúnica e invocar espíritos; envolve mais do que a psicografia, a psicofonia ou realizar desdobramentos. Estas são ações que um médium, mesmo não sendo espírita, pode realizar. Ser espírita envolve, sobretudo, estudar e aplicar a doutrina a si mesmo, buscando a reforma íntima, único meio de evoluir espiritualmente.

No caso dos escritores aqui elencados – Augusto, Tolstói, Hugo –, reafirmamos que os seus escritos se destinam a um objetivo estético, qual seja o de provocar a estesia do leitor, e não de privilegiar ou divulgar uma doutrina. Fazer uma obra de arte com o intuito de divulgar doutrinas é apagar o espírito criativo que deve prevalecer quando o assunto é estesia. O Espiritismo se faz presente nas obras desses autores assim como outras informações que ajudam a compor o enredo de uma narrativa ou a subjetividade dos versos de um poema. É verdade que o conjunto dessas informações ajuda a compor o perfil do escritor, e nada é mais marcante no homem, muito além de sua ideologia política, do que o perfil de sua religiosidade ou espiritualidade.

Essas ressalvas se fazem necessárias, com a finalidade de evidenciar que a criação literária é sempre maior do que a biografia de seu criador. Se não ponderarmos dessa forma, estaremos incorrendo no erro do biografismo, procurando ler a vida do autor pela sua obra – por exemplo, afirmando que Augusto dos Anjos, além de depressivo e melancólico, era tuberculoso. É estranho que aqueles que o classificam como tuberculoso, por causa do poema Os Doentes, não o digam também morfético… Talvez, porque no escalonamento das doenças, tuberculoso seja menos repugnante do que leproso. Se fizermos uma leitura ditada pelo biografismo, estaremos atribuindo ao poeta as muitas doenças, majoritariamente de ordem psíquica, que acometem o eu-lírico. Este se enquadra perfeitamente em muitos dos distúrbios classificados no DSM-5: transtorno de linguagem; transtorno delirante e alucinativo; transtorno depressivo; transtorno obsessivo-compulsivo; transtorno de insônia; transtorno do sono-vigília do ritmo circadiano; comportamento autolesivo; transtorno de ansiedade com o ambiente natural… Não entraremos em detalhes, pois os exemplos seriam muitos, considerando que são comportamentos comuns no eu-lírico. Destacamos, no entanto, dois exemplos: o primeiro em As Cismas do Destino (estrofe 25, parte I, versos 97-100) e o segundo em Tristezas de um Quarto Minguante (estrofes 8-9, versos 29-36):

Chegou-me o estado máximo da mágoa!
Duas, três, quatro, cinco, seis e sete
Que eu me furei com um canivete,
A hemoglobina vinha cheia de água!

A lâmpada a estirar línguas vermelhas
Lambe o ar. No bruto horror que me arrebata,
Como um degenerado psicopata
Eis-me a contar o número das telhas!

– Uma, duas, três, quatro… E aos tombos, tonta
Sinto a cabeça e a conta perco; e, em suma,
A conta recomeço, em ânsias: – Uma…
Mas novamente eis-me a perder a conta!

O ponto de comutação que deve ser levado em conta, na análise do texto literário, é o seguinte: uma coisa é o personagem, uma criatura de papel; outra é o escritor. Pode até, algumas vezes, ocorrer uma coincidência – ainda que separada – entre ambos, mas o personagem ou eu-lírico continua desempenhando sua função como figura de papel. Não se confunda, portanto, o criador com sua criatura.

Muito do que é visto na poesia de Augusto dos Anjos – delírio, alucinação, visões distorcidas da realidade, mania, dificuldade de expressão e a sensação do eu-poético de se encontrar em um espaço diferente do habitual – poderá ser entendido como fenômenos mediúnicos, também observados no Espiritismo, envolvendo a psicofonia, a dificuldade de expressar o que se observa no mundo espiritual e os desdobramentos. A diferença entre mediunidade e Espiritismo reside na consciência da reencarnação, por ser uma doutrina evolucionista. Já tivemos a oportunidade de escrever sobre essa relação espiritual do eu-lírico na poesia de Augusto dos Anjos, sempre ressaltando que essa espiritualidade é ampla, envolvendo Cristianismo, Budismo, Espiritismo e até o Monismo de Haeckel – este visto pelo próprio criador como uma religião natural (Capítulo XVIII, Nossa religião monista, em Os enigmas do Universo, 1902). Passaremos agora a uma breve análise do que o poema Os Doentes pode nos sugerir a respeito da espiritualidade que dialoga com o Espiritismo.

Em Os Doentes, o eu-lírico se vê em um embate com a degradação humana e com a da sociedade como um todo. Dentre todos os poemas nos quais o eu-poético confronta a degradação e a podridão que acompanham o ser humano, este talvez seja o mais explicitamente expressionista. É um longo poema, fundamentado substancialmente na evolução da espécie, que revela como a evolução do homem está tão corrompida que o eu-poético anseia, por vezes, retornar às formas primitivas de vermes – como o anfióxus e a tênia –, em busca de uma ancestralidade remota como monera, estabelecendo, assim, um diálogo com Monólogo de uma Sombra.

Nessa tensão, ocorrendo em um ambiente noturno – onde a noite se mostra mais psíquica que física – o eu-poético, tomado por sombras, vai fornecendo, aqui e acolá, pistas de um possível renascimento, o que se clarifica nas quatro estrofes finais da oitava parte do poema (estrofes 96-99), em que a regeneração é buscada e resulta em uma nova vida, mais explicitamente representada na nona parte, a última de Os Doentes (estrofes 100-110).

Ressalte-se que o eu, na sua mocidade, é cheio de ilusões, que se desfazem pela degradação generalizada (“para enterrar a minha ilusão de moço”, estrofe 73, parte VII, verso 289), imaginando, por exemplo, que o mal das Américas foi trazido pela colonização europeia, que matou os índios (“Mas, diante a xantocroide raça loura,
Jazem, caladas, todas as inúbias”, estrofe 42, parte IV, versos 163-164) e inaugurou a escravidão negra no continente, originando, como contrapeso, a prostituição (estrofes 92-94, parte VIII, versos 363-374), quando, na verdade, independentemente da colonização europeia, o homem não escaparia ao impulso de degradar a si mesmo e aos seus semelhantes.

É a consciência de quem foi – seja através da evolução da espécie, por “epigênese” (estrofe 60, parte V, verso 237), fruto de um “quimiotropismo erótico” (estrofe 22, parte III, versos 83-84) – ou pelo conhecimento de vidas passadas e, consequentemente, da reencarnação, que faz com que a ilusão da juventude se desfaça, permitindo ao eu-poético sentir o nascimento em sua alma “o começo magnífico de um sonho!” (estrofe 107, parte IX, verso 426).

Essa transformação de uma visão pessimista e melancólica (“Perfurava-me o peito a áspera pua
Do desânimo negro que me prostra”, estrofe 47, parte V, versos 183-184), ditada pela degradação, só é possível porque o eu se funde com ela e tem consciência de que age como uma “negra eucaristia” (estrofe 82, parte VII, verso 324): a graça da conscientização vem com o conhecimento da corrupção, que traz dor e sofrimento, levando o homem à esperança de transformar-se. Para isso, não basta reconhecer nossa evolução biológica; é fundamental evoluir espiritualmente. A quadra que se segue sintetiza, em nossa compreensão, esse momento (estrofe 100, parte IX, versos 395-398):

O inventário do que eu já tinha sido
Espantava. Restavam só de Augusto
A forma de um mamífero vetusto
E a cerebralidade de um vencido!

Se o “inventário” do que o eu-poético fora o espantava e restava dele apenas a antiga, bruta animalidade na forma, e, no pensamento, uma “cerebralidade” vencida pela materialidade, a solução já se apresenta pelo próprio eu: involuir às formas de vermes e retornar aos braços da monera, a mãe antiga (ver estrofes 54-55, parte IV, versos 211-218). Assim, o retorno aos primórdios da evolução – uma “saudade inconsciente da monera” – é, metaforicamente, a possibilidade de recomeçar outra vida, tendo aprendido com esta. Dessa forma, “Augusto” deixar de ser simplesmente o indivíduo é algo que transcende sua biografia. O desejo de esperança e a crença na renovação, como se evidencia na última estrofe do poema, anunciam a transformação do “Augusto” individual, animal, embrutecido e dominado pela materialidade, no “Augusto” espiritual, que deve surgir com a nova humanidade. Trata-se, pois, de uma transição da animalidade para a espiritualidade, conforme o poeta sempre se desprende dos limites biográficos em direção à magnitude da poesia.

É necessário, portanto, voltar a ser “Augusto”, aquele que cresce e se aprimora. Somente a consciência de nossa essência, aliada à esperança de mudança, pode levar à transformação – que afetará também a sociedade. Sem isso, todo edifício desmorona, seja ele físico ou subjetivo, individual ou coletivo (estrofe 105, parte IX, versos 415-418):

Contra a Arte, oh! Morte, em vão teu ódio exerces!
Mas, a meu ver, os sáxeos prédios tortos
Tinham aspectos de edifícios mortos,
Descompondo-se desde os alicerces!

É hora de buscar os versos que intermediam a passagem entre a degradação da matéria e a esperança de “gestação daquele grande feto, que vinha substituir a Espécie Humana” (estrofe 110, parte IX, versos 435-438). São duas as estrofes que fazem essa intermediação. Em uma, fica claro que a possibilidade da esperança é melhor do que ficar remoendo mágoas; na outra, encontra-se a essência da espiritualidade (estrofes 29-30, parte III, versos 111-118):

Antes levardes ainda uma quimera
Para a garganta onívora das lajes
Do que morrerdes, hoje, urrando ultrajes
Contra a dissolução que vos espera!

Porque a morte, resfriando-vos o rosto,
Consoante a minha concepção vesânica,
É a alfândega, onde toda a vida orgânica
Há de pagar um dia o último imposto!

A definição de “morte”, conforme apresentada na estrofe acima, é uma das mais bem construídas na poesia de Augusto dos Anjos. Estruturalmente, trata-se de uma metáfora simples – “a morte … é a alfândega” – acompanhada de uma restrição adjetiva (“onde a vida orgânica há de pagar um dia o último imposto”). Contudo, do ponto de vista do pensamento e da engenhosidade criativa, a metáfora se torna muito complexa, pois separa o que é matéria do que é espírito.

À semelhança do sistema aduaneiro, que tem a função de cobrar impostos sobre produtos estranhos à nova fronteira e de proibir a entrada de pessoas e produtos indesejáveis, na alfândega metafórica há uma clara distinção entre o que permanece e o que se vai. A matéria ficará; o espírito, por sua vez, está isento de qualquer ônus. Mesmo que essa segunda parte esteja implícita, ela não precisa ser explicitada para quem conhece a poesia de Augusto dos Anjos e se deixa levar por uma leitura sistêmica. Assim é a literatura: conseguimos identificar e separar as partes de um texto para, posteriormente, reconectá-las, pois cada parte possui seu significado, e a soma delas agrega uma nova significação.

O eu-poético sabe que é muito mais fácil conceber a ideia de que não há nada após a morte, razão pela qual é comum morrer “urrando ultrajes/Contra a dissolução” que aguarda cada um de nós. Nessa perspectiva, ter esperança de uma vida após a morte pode ser visto como um mal maior ou menor. Mesmo assim, para alguns essa concepção é “vesânica”, motivo pelo qual o eu-poético emprega o termo “quimera”, que pode significar utopia, sonho, absurdo ou fantasia. Pela estrutura do poema, trata-se de uma utopia – uma esperança vislumbrada pela vesânia –, bem articulada com a visão da humanidade tanto no presente quanto no futuro. A vesânia, que pode ser definida como loucura ou mania, encaixa-se no perfil delirante do eu-poético, como já atestamos em vários poemas. Vale lembrar que, em diversos momentos, o sonho se materializa, como afirmado em Os Doentes (estrofe 83, parte VIII, versos 327-330), onde o sonho assume características de um desdobramento:

Era todo o meu sonho, assim inchado,
Já podre, que a morfeia miserável
Tornava às impressões táteis, palpável,
Como se fosse um corpo organizado!

Essa visão compartilha a mesma ordem da “mania” apresentada em As Cismas do Destino (“As diferenciações que o psicoplasma/Humano sofre na mania mística”, estrofe 82, parte III, versos 325-326). A “mania mística” tem sentido semelhante ao da “concepção vesânica”, representando uma forma de se falar de mediunidade, onde o “Destino” revela ao homem o quão insignificante é diante das “forças inorgânicas da terra”, pois tudo será encerrado pelo “terráqueo abismo” (estrofe 84, parte III, versos 333-336).

Ao longo desta análise, procuramos demonstrar que um assunto tão complexo não pode ser resolvido rapidamente ou com meias palavras. Ele exige uma divisão das partes de um todo, cuja reunião posterior evidencia que o conjunto é muito maior e mais significativo do que cada parte isolada. Se somarmos o inventário do que o eu-poético foi, a esperança presente antes da morte e a visão do desmoronamento do corpo social e físico, percebemos que tudo prepara o caminho para a vinda de uma nova humanidade, cuja base deverá ser a espiritualidade.

A visão sistêmica da poesia de Augusto dos Anjos nos ensina que o Eu é um único e extenso poema, que oferece, mais do que qualquer teoria, maneiras de se analisar e compreender a existência. Durante muito tempo, a crítica permaneceu presa ao biografismo e ao culturalismo, discutindo tudo, exceto o texto em si. A crítica acadêmica veio para direcionar os estudos literários, mas acabou se acorrentando ao tecnicismo e ao teoricismo, muitas vezes matando a beleza da criação poética. Chegou o momento de deixar o texto falar por si próprio e seguir seus caminhos. E, no caso de Augusto dos Anjos, ao permitir que sua obra se expressasse livremente, percebemos que existe uma essência religiosa capaz de nos levar a reconhecer nela fenômenos vinculados ao Espiritismo.

Na imagem: Augusto dos Anjos (1884—1914), poeta e professor brasileiro, nascido na Paraíba.

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