Herculano Pires, o ícone ainda desafia os estudiosos da boa doutrina, por Wilson Garcia – Portal Espiritismo com Kardec – ECK

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“Enganam-se os que pensam na morte como morte”. J.H.P.

O cemitério São Paulo estava repleto naquela tarde de 9 de março de 1979. Familiares, amigos, admiradores, curiosos e autoridades do meio espírita e da sociedade assinavam com sua presença o livro da despedida, do até breve. O sol banhava de luz amarelo-claro os túmulos, já desenhando a sua parábola descendente, como a dizer que também se encerraria no túmulo da noite. O corpo de Herculano, então com quase 65 anos de vida, estava colocado sobre a lápide, também pronto a encerrar seu ciclo, mas, assim como o sol renasceria na manhã seguinte, também Herculano retornaria para mais uma vez dizer que não só a morte é um engano, como também vivos são igualmente os que afirmam que os que aqui estão estão, na verdade, longe da morte.

No lento processo de construção do destino, Herculano Pires jovem ainda impressionou não só o mundo dos que o rodeavam, mas intelectuais distantes, de capitais onde a intelectualidade se destacava, com suas produções iniciais, em prosa e verso. Pelos vinte anos, o jornalista que já agia movimentando prensas e penas, viu-se frente aos primeiros contatos mediúnicos de uma carreira que dali em diante não deixaria mais a doutrina que lhe abria os olhos e alimentava o saber: o espiritismo.

Sua biografia está traçada por linhas expressivas saídas da pena rigorosa de Jorge Rizzini, que o acompanhou por quase trinta anos. Esse reconhecido autor, já ao final do texto biográfico, o denomina “homem múltiplo”. Quando, pois, as portas da mediunidade colocaram Herculano Pires no contato afetivo com médiuns de excelentes condições, os espíritos fecharam os laços e estabeleceram a convivência que prosseguiria pela vida afora, num tipo de casamento intelecto-moral. Sem ser médium, Herculano Pires descobriria que também o era – e quem afirmaria essa condição seria ele próprio, ao desdobrar as letras assinadas por Kardec. Afinal, médiuns todos somos.

Herculano jovem encontra dois extraordinários médiuns

Dois foram os médiuns dos primeiros tempos de Herculano Pires: Ciro Milton de Abreu, um profissional ferroviário, e Urbano de Assis Xavier, cirurgião-dentista. Duas expressões de altíssimo caráter moral e de classe social diferente, que indicavam que o espiritismo pertencia ao homem de todos os matizes afetivos, de todas as classes e de todas as latitudes. Herculano presenciou fenômenos mediúnicos extraordinários, participou deles e foi por eles marcado em profundidade, para jamais olvidar. Quando, portanto, instalou-se definitivamente na capital paulista, optou por dedicar um pequeno recanto de sua residência aos estudos espíritas, onde a mediunidade reinava aliada ao esforço de refletir sobre a filosofia que Kardec descortinou para a Humanidade. Semanalmente, por anos, aquela casa era palco de festa espiritual.

A vida toda, Herculano enfrentou problemas materiais de toda ordem e jamais foi – nem desejou ser – um homem destinado às posses e ao patrimônio. Isso, porém, não significa que não tenha lutado para conquistar os meios financeiros necessários à manutenção da família e à obtenção de condições melhores para cultivar suas diversas inclinações literárias. Nem mesmo as relações com médiuns, que perdurariam por toda a vida, seriam confundidas por ele com oportunidade de facilitação financeira – o que, para Herculano, seria inaceitável.

A verdade que esclarece, liberta. O homem precisa dela.

Dois outros médiuns passaram a integrar a trajetória de Herculano Pires, marcando uma nova fase em que o “homem múltiplo” ia se firmando aos olhos do mundo. São eles: Hercílio Maes e Pietro Ubaldi. Mas, agora, as condições eram diferentes. Não se tratava mais de compartilhar fenômenos físicos e intelectuais, mas de assumir o compromisso de combater a mentira e defender a verdade – um dever que recai sobre todo cidadão de bem.

Hercílio Maes passou a apresentar ao mundo obras atribuídas a Ramatis, com ideias e teorias que dialogavam com o bom senso e o conhecimento sólido da doutrina espírita. Fortalecido pelo apoio dos amigos invisíveis, Herculano Pires travou batalhas argumentativas, utilizando sua voz firme e seus argumentos como uma espada que confrontava o propagador da mentira.

O mesmo ocorreu com Pietro Ubaldi, cuja grande obra atravessou o Atlântico, sendo recebida com entusiasmo pela intelectualidade brasileira, especialmente a espírita. Herculano, entre os admiradores do livro A grande síntese, reconhecia nele uma obra de extraordinária relevância. Contudo, quando Ubaldi – que não se declarava espírita – passou a promover críticas infundadas à doutrina de Kardec, chegando inclusive a propor, num congresso espírita pan-americano em Buenos Aires, que os livros kardecianos fossem substituídos pelos seus, Herculano não hesitou em contestar, ponto a ponto, tais pretensões absurdas. Em um documento encaminhado à imprensa, ele elencou os principais aspectos da proposta, desmascarando suas incoerências. A proposta ubaldina foi, naturalmente, rejeitada.

Quando a ilusão é lançada no rio límpido a água se torna turva.

O renomado bastonário francês, Jean Baptiste Roustaing, também foi alvo de críticas por parte de Kardec, devido às suas teses absurdas e à pretensão de ser portador de uma nova revelação que pretendia integrar o espiritismo. Em solo brasileiro, encontrou apoiadores influentes, conquistando parte do movimento espírita. Embora não fosse um médium propriamente dito, Roustaing se valia de uma única médium de sua confiança para defender suas ideias. Herculano Pires, em parceria com o espírita de reconhecida capacidade intelectual Júlio Abreu Filho, produziu uma obra literária na qual detalhavam os principais pontos das ideias roustainguistas, apontando suas ambiguidades e elementos que se chocavam com o bom senso espírita.

Nas plagas mineiras um canivete risca o espaço e atrai multidões

A história de Herculano Pires com médiuns e a mediunidade teve também um importante desdobramento literário na convivência com dois outros expoentes renomados: Zé Arigó, o médium de cura que realizava fenômenos extraordinários com sua faca enferrujada, e Chico Xavier, o médium cuja atividade psicográfica durante quase oitenta anos encantou o Brasil. A relação de Herculano com ambos ultrapassou os limites da admiração, transformando-se em uma profunda intimidade afetiva.

Herculano foi o amigo, o jornalista e o escritor junto a Arigó. Observou por diversos períodos os fenômenos em seus desdobramentos, anotou, estudou, conversou com atendidos, acompanhou casos e acabou por produzir um livro – Zé Arigó, vida, mediunidade e martírio – que é um verdadeiro brado e, ao mesmo tempo, um incisivo chamamento à comunidade científica para que se dedique à pesquisa do médium e dos fenômenos por ele produzidos.

O brado, é preciso dizer, não foi dirigido apenas aos homens de ciência, mas também aos espíritas, pois, segundo Herculano Pires, as resistências ao médium de Congonhas do Campo vinham, em boa parte, da dificuldade de compreender os fenômenos mediúnicos, aliada ao preconceito em relação à mediunidade curadora nos moldes de Zé Arigó.

A mão que toca um violão… toca também os corações

Finalmente, surge no cenário a figura mundialmente reconhecida de Francisco Cândido Xavier, o médium das letras, autor de mais de 400 livros e de mensagens atribuídas a dezenas de autores espirituais. Herculano e Chico Xavier já mantinham, desde muito antes do famoso programa Pinga Fogo, transmitido pela antiga TV Tupi, uma relação marcada pelo respeito mútuo e pela compreensão da importante missão que cada um desempenhava no espiritismo.

Dessa parceria, que se baseava no apoio mútuo, nasceram atividades conjuntas, estudos e publicações. Herculano chegou a assinar, junto a Chico Xavier, cinco livros – quatro deles compostos por mensagens psicografadas com comentários de Herculano no jornal Diário de São Paulo, e um resultado do episódio envolvendo a publicação e a tradução de O evangelho segundo o espiritismo, obra adaptada por Paulo Alves Godoy e lançada pela Federação Espírita do Estado de São Paulo.

Em outras obras, Herculano Pires citava com frequência as opiniões de Emmanuel, André Luiz e outros, sempre com a postura crítica e analítica de alguém que prezava pela isenção, sem o deslumbramento muitas vezes presente entre os admiradores do médium. Para que amizades sejam fortes, é preciso que sejam franqueadas e honestas. Por essas e outras razões, Chico Xavier nutria por Herculano um respeito imenso e uma admiração incontestável. Emmanuel, guia de Chico, chegou a cunhar a famosa expressão que qualificava Herculano Pires como “o metro que melhor mediu Kardec”.

Aqueles que caminham juntos não temem tempestades

Deixo, para o final desta crônica-reportagem, a lembrança de Jorge Rizzini – amigo inseparável, presente em todos os momentos marcantes da vida de Herculano Pires. Embora alguns possam argumentar que a narrativa deveria encerrar com Chico, Rizzini teve um papel singular na trajetória de Herculano, sendo o companheiro que o incentivou a explorar seu lado mediúnico, além de ter prefaciado as obras produzidas por Rizzini sob a inspiração dos espíritos. Esses prefácios foram fundamentais para dissipar as dúvidas de inúmeros espíritas quanto à natureza mediúnica de Rizzini, reconhecido não apenas como um escritor excelente e laureado, mas também como médium.

Com Rizzini foi diferente de todos os outros médiuns, não que tivesse sido mais ou melhor – foi, simplesmente, uma relação diferente, extensa, íntima e intensa, que se estendia até mesmo aos lares dos dois. Rizzini acreditava ter vivido vidas passadas ao lado de Herculano, já nos tempos gloriosos da Roma antiga. Juntos, enfrentaram momentos difíceis em defesa do espiritismo: desde a batalha para compreender o importante trabalho mediúnico de Zé Arigó, passando pelo programa de rádio apresentado por Herculano na Rádio Mulher, até a luta pelo respeito aos textos originais de Kardec – culminando com o episódio da tradução adulterada de uma obra espírita – e os debates televisivos com figuras como o padre Quevedo. Herculano Pires e Jorge Rizzini marcharam juntos até o último suspiro.

A amizade entre eles não se restringia apenas ao âmbito mediúnico. Rizzini e Herculano se conheceram pela intelectualidade: quando Rizzini começava a se destacar como escritor, Herculano já consolidava seu caminho. Rizzini era, sem saber plenamente, um escritor mediúnico em formação – e, ao passar a dar mais atenção à sua mediunidade, encontrou em Herculano o amigo experiente, capaz de validar sua produção literária.

Enquanto Rizzini atuava também como médium ostensivo, Herculano trazia a sensibilidade do poeta, do filósofo, do professor e do romancista. Ele era, em suma, o “homem múltiplo” que Rizzini tanto admirava, a personificação da maior inteligência espírita do século XX.

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