Temos “médiuns” cegos a guiar outros cegos, dando explicações fantásticas e impressionantes, sobre a “distribuição da Justiça Divina” (quando, por exemplo, atestam que dada enfermidade, situação ou ocorrência é “consequência” de certos procedimentos do interessado, em vivências anteriores), cunhando uma estranha e deplorável configuração da Lei de Causa e Efeito que permite, aos seus parcos e enevoados olhos, que o “mal” seja “pago”, em outra vida (ou até na mesma), pelo “mal”.
“O erro de certos médiuns é crer na infalibilidade dos Espíritos que se comunicam com eles, e que os seduzem com algumas belas frases, apoiadas num nome imponente, que, o mais frequentemente, é um nome emprestado. Reconhecer a fraude é um resultado do estudo e da experiência” (Allan Kardec, na “Revue Spirite”, outubro de 1860, em nota ao texto “Sobre o valor das comunicações espíritas”, de autoria do Sr. Jobard).
A advertência responsável do Codificador nos remete à ideia do uso da mediunidade e do superdimensionamento das mensagens psicografadas, tanto na sua época quanto em nossos dias. Desnecessário dizer que, via de regra, os procedimentos cunhados por Rivail na análise e processamento das comunicações mediúnicas – para fins de publicação e aceitação no, ainda que incipiente, cenário das associações espíritas da França do século XIX – foram, na prática, rechaçados pela grande maioria das instituições espíritas atuais.
Em outras palavras, se aceita (quase) tudo como fidedigno e verossímil
Principalmente no âmbito das reuniões mediúnicas e, ainda mais, com o entusiasmado interesse de empresas comerciais (a maioria leiga e sem compromisso com a Filosofia Espírita) em publicar romances “psicografados”, ou livros de “auto ajuda” e “reforma íntima”, temos uma proliferação de ervas daninhas que, se não nocivas na totalidade à planta espiritista, causam, aqui e acolá, abalos na árvore (meio espírita), disseminando invencionices e absurdos – muitos, inclusive, impublicáveis.
O fato é que poucos, pouquíssimos, se dedicam ao estudo. Raros são os que confrontam as redações “obtidas mediunicamente” (seja pela mediunidade, pelo animismo ou pela interação entre ambos) com o conjunto de princípios e o contexto das informações presentes nas obras tuteladas por Kardec. Bastam alguns floreios, frases com apelo sentimental, “orientações” ou conselhos e, até, certos sobrenomes ou alcunhas ao final das mensagens para que o conteúdo adquira uma conotação de oficialidade, sendo agregado ao conjunto das “verdades espíritas”. Falta imensamente o “espírito” do trabalho kardeciano, sobretudo diante da assertiva de Erasto, que enfatizava a necessidade imperiosa de pesar e, com prudência, rejeitar até nove verdades, antes de aceitar uma única falsa ideia.
São muitos os médiuns fascinados, fantasiosos e iludidos, que se esquecem do principal compromisso da tarefa mediúnica: a Verdade, não a sua, mas a da (Boa) Espiritualidade, à qual deveriam servir no oportuno e benfazejo momento da concentração e do exercício medianímico. É bem verdade que é impossível dissociar, na atividade espiritual, a conjuntura pessoal (com crenças, idiossincrasias, manias e tendências, herdadas ao longo de vidas sucessivas) do conteúdo da mensagem transmitida. O filtro, contudo, revela-se imperfeito na maioria dos casos.
O ideal é reduzir ao mínimo essa influência
Ou seja, que a interferência do médium na comunicação – e, consequentemente, na veiculação de novas “revelações” – seja precedida, no mínimo, de alguns caracteres básicos: (i) dedicação à causa espírita e à tarefa mediúnica sem outros interesses, com preparo e vigilância constante; (ii) aceitação de um exame criterioso, por estudiosos igualmente comprometidos, acerca da veracidade ideológica do conteúdo da mensagem e da pesquisa sobre a autenticidade da fonte (baseada, por exemplo, em arquivos históricos); e (iii), sempre que possível, a presença de médiuns videntes idôneos e isentos, capazes de identificar espiritualmente não só a personalidade que se comunica, mas também sua índole, isto é, o grau de adiantamento espiritual e a finalidade da comunicação.
Será que fazemos isso? A realidade mostra que não. Não “temos tempo” para tal atividade e, mesmo que tivéssemos, em muitas instituições não há voluntários dispostos a servir de “cobaias”, pois corremos, todos nós que participamos da atividade, o risco de ter nossas “produções” mediúnicas refutadas, contestadas ou descartadas. Francamente, não é comum encontrar alguém que execute esse processo com regularidade.
Nas associações espíritas, impera o princípio da autoridade – que, quando o médium é psicógrafo ou psicofônico, “certifica” os textos recebidos e, muitas vezes, os inclui em periódicos destinados ao público frequentador – sem o devido respeito à análise do conteúdo das mensagens, conforme observava o Codificador em relação à metodologia de seu trabalho pioneiro, no contexto do consenso universal dos ensinos dos Espíritos.
Além disso, o problema se agrava quando alguns médiuns, insatisfeitos com sua incidência e interferência no conjunto de informações disponíveis ao grande público, passam a recomendar, pessoalmente, atitudes e conselhos durante as entrevistas de atendimento fraterno.
Assim, voltamos à imagem dos “médiuns” cegos guiando outros cegos, explicando de forma fantástica e impressionante a “distribuição da Justiça Divina” – como quando afirmam que determinada enfermidade, situação ou ocorrência é “consequência” de procedimentos do interessado em vidas passadas –, estruturando, de modo estranho e deplorável, a Lei de Causa e Efeito que autoriza, em suas percepções limitadas, que o “mal” seja quitado, em outra ou até na mesma vida, com outro “mal”. Desse modo, surgem absurdos como o relato de uma instituição que sustentava que “a estuprada e o estuprador atraíram-se mutuamente pelo padrão de suas vibrações, para resgatar débitos pretéritos”.
Paralelamente, eventos trágicos que resultam na desencarnação de uma ou mais pessoas – especialmente aquelas com maior apelo midiático – são utilizados por certos médiuns, e posteriormente por palestrantes e articulistas espíritas, para “resgatar” fatos do passado ricos em detalhes, justificando as ocorrências atuais. Essa prática caracteriza uma revisitação da irretocável lei de Talião, que já fora convenientemente repelida por Yeshua, há mais de dois mil anos, em suas lições à Humanidade. É importante esclarecer que o repúdio do Nazareno à citada lei passou-se justamente por sua interpretação simplista e repleta de vingança direta – por exemplo, a ideia de que a mão de um ladrão deveria ser cortada.
Em termos espirituais, contudo, a Filosofia Espírita esclarece com profundidade a questão:
“Tomai cuidado! Tendes-vos enganado a respeito dessas palavras, como acerca de muitas outras. A pena de talião é a justiça de Deus. É Deus quem a aplica. Todos vós sofreis essa pena a cada instante, pois que sois punidos naquilo em que haveis pecado, nesta existência ou em outra. Aquele que foi causa do sofrimento para seus semelhantes virá a achar-se numa condição em que sofrerá o que tenha feito sofrer. Este o sentido das palavras de Jesus. Mas não vos disse ele também: Perdoai aos vossos inimigos? E não vos ensinou a pedir a Deus que vos perdoe as ofensas como houverdes vós mesmos perdoado, isto é, na mesma proporção em que houverdes perdoado? Compreendei-o bem.”
Em vez de seguir uma lógica míope e transversa
Ao invés de adotarmos essa abordagem limitada, frequentemente utilizada por alguns médiuns e expositores espíritas – que associam fatos violentos e de comoção pública a eventos do passado conhecidos ou hipotéticos para “justificar” as dores atuais – devemos ponderar, assim como em todas as questões que afetam a existência humana, entre o princípio taliônico das Leis Divinas e os elementos de justiça, amor e bondade presentes nas Leis Universais.
A fantasia, dessa forma, mistura-se propositalmente com a realidade. São inúmeros os médiuns e dirigentes que se colocam como juízes, observadores e relatores dos processos reencarnatórios, chegando, inclusive, a prescrever condutas para a vida alheia com “conselhos” ou, surpreendentemente, com receituários de “frequência” para dias de “palestra e passe” ou a necessidade de estudar o Espiritismo e/ou a Mediunidade, compelindo-os à participação em grupos e reuniões dessa natureza.
Essa banalização da mediunidade, realizada sem critérios, compromisso ou responsabilidade, exige de nós cautela. É fundamental evitar ser influenciado por tais práticas, seja no contato direto com representantes desse modelo – que se utilizam de palavras mansas, olhares sedutores e discursos suaves – ou na adoção, em nossa conduta, de comportamentos que se assemelhem a esses, contribuindo para nossa própria queda e para a de todos que se aproximem, seduzidos pelas “água” espirituais que lhes são ofertadas.
Portanto, é prudente afastar-se de “juízos fáceis” e análises precoces formuladas por certas personalidades, para que não acabemos advogando teses absurdas – desprovidas de lógica e bom senso, e que ofendem a memória do grande Allan Kardec – em prol de “adequar a Doutrina às nossas ideias e percepções”, encontrando explicações para tudo em raciocínios enviesados.
Sejamos, pois, espíritas autênticos, verdadeiramente compromissados com o ideal e com a grandeza da tarefa mediúnica, atendendo à preciosa advertência do carpinteiro de Nazaré: “Vigiai, porque não sabeis nem o dia, nem a hora”.

Saint-Clair Lima é um estudioso dedicado do Espiritismo, com mais de 20 anos de vivência na Doutrina. Com sensibilidade e profundo respeito pelos ensinamentos de Allan Kardec, ele criou o blog Amparo Espiritual como um espaço de acolhimento, reflexão e partilha, inspirado por suas próprias experiências e pelo desejo sincero de auxiliar quem busca luz no caminho espiritual.