O Espiritismo não deve ser utilizado para justificar escolhas partidárias, nem para legitimar candidaturas ou propostas/planos de governo.
O Brasil, a cada dois anos, realiza eleições, e o movimento espírita, repetidamente, vê-se mergulhado na indevida utilização político-partidária do Espiritismo.
Sim, é verdade que a Doutrina Espírita, como qualquer campo do conhecimento humano (lembremos de que Espíritos são pessoas sem seus corpos), possui forte conteúdo político, não somente pelo que ressalta, com maior clareza, do estudo das leis morais, terceira parte de “O Livro dos Espíritos”, como também pelos reflexos ético-morais do paradigma dualista que abraça, ressaltando a primazia do ser imortal (Espírito) sobre a parte finita, perecível (corpo). No entanto, é preciso considerar que o olhar e a forma de relação com esse conteúdo de implicações políticas estão sempre condicionados pelos olhos de quem vê, comportando interpretações e vivências que dizem respeito à realidade de cada um, aí considerando as conquistas de outras vidas e as experiências da atual.
Parece indevido aprisionar o discurso espírita em um único viés político, sobretudo quando, por detrás dessa pretensão de domínio discursivo, encontram-se interesses partidários. Nesse caso, há uma tendência à distorção do conteúdo espírita para fazê-lo caber nessa ou naquela agenda partidária, com o fim claro de capitalizar adeptos para esse ou aquele projeto de grupos ou coletivos.
Assim, é natural que os espíritas, enquanto indivíduos no mundo, se inclinem sobre as mais variadas ideologias políticas
fazendo-o, racionalmente ou não, em virtude das simpatias pessoais e dos muitos interesses que atravessam o existir humano. Pretender que os espíritas sejam ou deveriam ser de direita, de esquerda, de centro ou de qualquer outro arranjo possível dentro do polígono pluripartidário é, no mínimo, desprezar a diversidade inerente à própria natureza humana, salvo quando exista alguma intenção velada de manipulação e domínio dos discursos.
No movimento espírita atual, as faces do polígono das ideologias políticas, inclusive dos partidarismos, encontram-se representadas de muitas formas, ora de maneira explícita, ora implícita. Há tendências à esquerda que se declaram abertamente, com o mérito da sinceridade, pois não escondem o que pensam e o que pretendem; promovem eventos presenciais e virtuais com figuras partidárias, apresentam candidaturas ou apoio a candidatos e defendem o discurso da inserção partidária como mote de transformação social, excluindo outros olhares e, em alguns casos, demonizando tudo o que foge do escopo apresentado.
Também é possível observar, por outro lado, espíritas à direita, muitos dos quais exaltam uma “neutralidade cristã” adornada por palavras amenas e “linguagem nobre” e que, mesmo assim, promovem ações diretas ou indiretas de apoio a candidatos e projetos políticos. Essas ações variam desde o uso de camisetas com fotos de candidatos durante atividades públicas dos centros (como palestras, passes, atendimentos fraternos e ações sociais) até a declaração, em eventos e reuniões, de que certos candidatos são “Espíritos missionários” – chegando, às vezes, a alegar indicação espiritual – e que, por isso, merecem ser alçados aos cargos eletivos para materializar “os planos de Deus na Terra”.
Entre essas posturas, há uma diversidade não só de ideias e ideais, mas também de atitudes. Muitos que se declaram neutros o fazem para se proteger de discussões estéreis e ataques intermináveis, mesmo tendo clareza sobre suas crenças e podendo manifestá-las de maneira mais íntima, sem fundamentá-las em predestinações ou em conceitos estritamente espíritas.
Allan Kardec teve a oportunidade de afirmar, tanto no início quanto no fim da década de 1860, em diversos números da “Revue Spirite”, que o debate político-partidário não deveria permear a pauta dos grupos espíritas. Isso não significa que ele não possuísse preferências ou inclinações, mas que compreendia o quão imprópria era a mistura de interesses, sobretudo face ao uso indevido – ou abuso – do Espiritismo para fins escusos, considerando a aura mística e mítica que envolve qualquer abordagem do que o vulgo considera sobrenatural.
Na atualidade, esse cuidado de Kardec parece esquecido
Observa-se, não só, membros do movimento espírita que, ao se candidatarem a cargos eletivos, se apresentam como representantes dos interesses do Espiritismo, mas também aqueles que distorcem conceitos, ideias e propostas para justificar plataformas partidárias de apadrinhados ou “escolhidos” que se pretende promover, sob a “bandeira” da missão divina, da investidura espiritual, da revolução social ou da defesa dos vulneráveis.
O Espiritismo, em sua ligação histórica com o Cristianismo e, assim como Jesus, defende a proteção das pessoas mais vulneráveis sem, contudo, despojar os “mais privilegiados” de sua condição humana. Alterna, por um lado, propostas mais conservadoras e passíveis de diálogo com um ideal liberal – encontradas em ideias veiculadas pelo próprio Kardec e por Espíritos como Erasto – mas jamais com o neoliberalismo e sua desconsideração pela vida, sobretudo pela vida humana. Por outro lado, encerra forte conteúdo de justiça social, aproximando-se de uma esquerda ideal, não partidária e ainda a ser praticada, tal como defendida por León Denis e presente nas críticas das leis morais, especialmente nas discussões sobre liberdade, igualdade e progresso.
O Espiritismo, porém, não precisa de representantes eleitos para a “defesa de seus interesses”. Quem se apresenta dessa forma, no mínimo, está movido pela ingenuidade ou pela má-fé, demonstrando que não merece ser eleito, por desconhecer a finalidade dos cargos que almeja ocupar.
O Espiritismo não deve ser utilizado para justificar escolhas partidárias, nem para legitimar candidaturas ou propostas/planos de governo. Estimular o contrário é incorrer em grave desvio de finalidade, não só da doutrina em si, como também do movimento espírita, contribuindo para a corrupção dos valores que se busca combater “em nome do bem”, “em nome da paz” ou “em nome do Evangelho”.
Vigiemos e oremos, para não cairmos nos “cantos de sereia”. Vigiemos e oremos, também, para não nos convertermos, ainda que de boa vontade, em sereias que encantam os ouvidos dos menos críticos, dos menos experientes e dos mais desavisados.

Saint-Clair Lima é um estudioso dedicado do Espiritismo, com mais de 20 anos de vivência na Doutrina. Com sensibilidade e profundo respeito pelos ensinamentos de Allan Kardec, ele criou o blog Amparo Espiritual como um espaço de acolhimento, reflexão e partilha, inspirado por suas próprias experiências e pelo desejo sincero de auxiliar quem busca luz no caminho espiritual.