A universalidade do Espiritismo frente às abordagens decoloniais, por Marco Milani – Portal Espiritismo com Kardec – ECK

A Doutrina Espírita parte do princípio de que a verdade espiritual é acessível a todos e não depende da tradição particular de um povo ou de um continente, mas sim da capacidade de análise racional e moral de qualquer ser humano. A cultura de Kardec serviu como veículo para a sistematização, mas o conteúdo, oriundo dos Espíritos, transcende os limites históricos e geográficos de sua codificação.

O crescente da influência do pensamento decolonial em algumas áreas das ciências humanas tem estimulado tentativas recentes de aplicar suas categorias críticas ao Espiritismo. Essa aproximação, embora por vezes bem-intencionada, revela uma profunda incompreensão epistemológica sobre a natureza dessa doutrina, tanto em seus fundamentos quanto em sua proposta metodológica.

Enquanto o pensamento decolonial se estrutura como uma crítica à hegemonia do conhecimento ocidental e às relações de poder presentes nas formas de produção e validação do saber, o Espiritismo emerge como um projeto de emancipação racional do pensamento religioso e místico, fundamentado em princípios universais e em método experimental.

A proposta central da teoria decolonial – que visa questionar a colonialidade do poder, do saber e do ser, valorizando epistemologias “do Sul” e saberes oriundos de tradições não ocidentais – sofre um equívoco ao tentar aplicá-la ao Espiritismo. Essa aproximação confunde o universalismo da razão com etnocentrismo europeu, desconsiderando que a doutrina codificada por Allan Kardec não se trata de uma imposição cultural, mas de uma filosofia de base científica voltada à compreensão das leis universais da vida espiritual.

Conforme delineado por Kardec, o Espiritismo não é um sistema ideológico de domínio cultural, mas um esforço para construir um conhecimento verificável, passível de ser reproduzido e criticado por qualquer pessoa, independentemente de sua origem cultural. Como ele mesmo afirma, “o Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos e de suas relações com o mundo corporal”, validando-se independentemente do local em que se manifesta.

Kardec, embora imerso na cultura europeia do século XIX – fazendo uso da linguagem, códigos e valores de seu tempo – não comprometeu a proposta universal de um ensino que ultrapassa barreiras geográficas e culturais. Sua atuação consistiu na organização e sistematização de manifestações espirituais diversas, sem reivindicar a autoria plena das ideias, mas sim aplicando um critério racional e metódico para discernir aquelas mensagens compatíveis com os princípios universais de moral, lógica e progresso.

O Espiritismo jamais se propôs como instrumento de homogeneização cultural. Ao contrário, ele reconhece a pluralidade de pensamentos e a diversidade das experiências espirituais, aplicando seus princípios morais – baseados em justiça, amor e caridade – de modo relativo ao contexto cultural, histórico e evolutivo de cada povo. Kardec valorizou os saberes tradicionais, defendendo que a validação de qualquer conhecimento deve se dar com base na razão, experiência e moralidade universais.

A tentativa de reinterpretar o Espiritismo sob uma ótica decolonial frequentemente se apoia em três premissas equivocadas: a primeira pressupõe que a doutrina seria uma apropriação eurocêntrica dos saberes espirituais ancestrais, apagando sua diversidade; a segunda sugere uma homogeneização da experiência espiritual em moldes rigorosamente racionais e cientificistas; e a terceira defende que o Espiritismo teria historicamente se alinhado a projetos de poder colonial, direta ou indiretamente. Contudo, análises objetivas das fontes primárias revelam que Kardec se limitou a organizar e sistematizar um conjunto de manifestações espirituais ocorridas em diferentes países e sob variadas formas, sem silenciar as vozes não europeias ou as espiritualidades autóctones.

Ao examinar os saberes ancestrais, o Espiritismo propõe um olhar crítico, livre de dogmas e imposições, onde a ancestralidade não é oposta à racionalidade, mas sim integrada por meio de um processo que parte do conhecido para o desconhecido. Dessa forma, a doutrina não nega os saberes tradicionais, mas os submete a um método que privilegia a coerência com a razão e a moral universal.

A associação do Espiritismo com o colonialismo carece de fundamentação histórica. Muitos dos primeiros adeptos da doutrina foram ativistas em causas como a abolição da escravatura, a educação popular, os direitos das mulheres e a liberdade de expressão. No Brasil, por exemplo, o Espiritismo encontrou eco entre intelectuais e grupos que viam na doutrina uma forma de resistência ao clericalismo e ao obscurantismo. Assim, o Espiritismo se apresentou como uma via alternativa de emancipação moral e intelectual, comprometida com a liberdade de pensamento, a responsabilidade individual e a perfectibilidade do ser.

Aplicar categorias contemporâneas – como a da colonialidade do saber – ao contexto formador do Espiritismo no século XIX configura um anacronismo metodológico, pois ignora a especificidade histórica e o projeto científico que guiava Kardec em sua época. Ao imputar um suposto eurocentrismo à doutrina, corre-se o risco de negar sua natureza científica e seu compromisso com a busca por leis gerais que possam ser compreendidas e verificadas por todos.

Em suma, reinterpretar o Espiritismo através de categorias decoloniais não respeita a singularidade epistemológica e histórica da doutrina. Reduzir a proposta espírita a um produto da colonialidade é desconsiderar sua essência enquanto filosofia científica e moral, comprometida com a liberdade de consciência e a transformação espiritual.

Fontes:

  • Kardec, A. (2003). “O evangelho segundo o Espiritismo”. Editora LAKE.
  • Kardec, A. (1996). “O livro dos médiuns”. Editora EME.
  • Kardec, A. (2008). “O que é o Espiritismo”. Federação Espírita Brasileira.
  • Koselleck, R. (2006). “Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos”. Contraponto/EdUERJ.
  • Mignolo, W., & Walsh, C. (2018). “On decoloniality: Concepts, analytics, praxis”. Duke University Press.
  • Pereira A. S. (2023). “Notas para um Espiritismo Decolonial”. FAK.

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