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NOTA INTRODUTÓRIA DO ECK
Concebido em três partes, este estudo visa levantar questões acerca de pontos considerados questionáveis pelo autor, em relação à primeira obra de Kardec, “O livro dos Espíritos”. A intenção é apresentar refutações de cunho doutrinário direcionados a Espíritos fortes, livres-pensadores, emancipados de preconceitos, cuja morada intelectual é construída na rocha firme da razão científica.
Acompanhe, uma a uma, as partes. Reflita sobre os apontamentos nelas contidos. Sugerimos discutir os mesmos em seu grupo de estudos espíritas, permitindo o arejamento que só o contraditório propicia.
SEGUNDA PARTE
Liberdade e Não-Liberdade
No item “122” há a seguinte afirmação: “O livre-arbítrio se desenvolve à medida que o Espírito adquire consciência de si mesmo. Não haveria liberdade, se a escolha fosse provocada por uma causa estranha à vontade do Espírito. A causa não está nele, mas no exterior, nas influências a que ele cede em virtude de sua espontânea vontade. Esta é a grande figura da queda do homem e do pecado original; uns cederam à tentação e outros a resistiram”.
Segundo a teoria espírita, o Espírito, ao recém-sair da fase animal – independentemente de estar encarnado ou desencarnado – ao iniciar os primeiros passos na condição humana é incapaz de distinguir o que é Bem e o que é Mal. Trazendo consigo, em seu psiquismo, uma carga de instintos com os quais desenvolverá o pensamento e a razão, manifestam-se então os germes do livre-arbítrio, que evoluirá de forma natural e espontânea à medida que gradativamente se torna consciente de sua existência.
Contudo, pelo teor da resposta do Espírito, o Princípio Inteligente mal tendo iniciado a condição de Espírito, já se torna passivo, joguete e submisso a coações e influências de outros Espíritos imperfeitos
Na resposta, os maus exercem sobre ele um domínio irresistível, seduzindo-o com promessas de valores materiais, estimulando-o a buscar satisfações e prazeres danosos a todo custo. Fascinam-no com o poder sobre tudo e todos, inoculando nele a vaidade, o egoísmo e o orgulho – confirmando a tese “rousseauniana” de que o homem nasce puro, mas é contaminado pela sociedade, que lhe transmite vícios e defeitos. Seriam esses métodos idênticos aos dos criminosos que, agenciando a exploração de crianças ingênuas, atraem-nas com dinheiro, presentes e guloseimas?
A princípio, a resposta soa contraditória ao afirmar que não haveria liberdade se a escolha fosse provocada por uma causa alheia à vontade do Espírito, ao mesmo tempo em que se diz que ele cede em virtude de sua espontânea vontade. Como pode ser que, por um lado, o Espírito se submeta à vontade externa por não ter vontade própria e, por outro, exerça escolha espontânea? Ou, em outras palavras, ou ele possui vontade – de modo que a responsabilidade pelas escolhas seria intrínseca –, ou não a possui, e toda a causa seria imputada aos terceiros que o pressionam ao mal.
Surge, então, a seguinte indagação: os mesmos Espíritos que assediaram outros no momento do nascimento não teriam sido, por sua vez, também alvos dos assédios dos Espíritos mais antigos? Em um encadeamento infindável, estes também foram fascinados por outros que existiram antes deles. Se seguirmos essa lógica, quanto mais antigos os Espíritos, mais inteligentes, poderosos e maldosos eles teriam de fato se tornado – manobrando os mais jovens. Assim, recuando para os primórdios da criação, seria possível concluir que haveria uma sucessão interminável de seres perversos, organizados em classes e ordens infinitamente numerosas, eternamente dedicadas ao Mal.
Ademais, a resposta carrega, ainda que de forma inconsciente, a doutrina teológica da queda dos anjos – culminando com a figura de Satanás remontada ao princípio dos tempos. Se aceitássemos essa resposta ao pé da letra, seríamos forçados a admitir que os gênios maléficos são, desde o início, inclinados ao Mal absoluto e possuem inteligência e racionalidade equivalentes às do Bem. Dessa forma, o chefe supremo, Satanás, equipararia-se a Deus em atributos e inteligência, o que implicaria admitir que, desde os confins da eternidade, o Bem supremo se contrapunha ao Mal na forma da “imperfeição suprema”.
Essa doutrina da queda mina o princípio de isonomia, propugnado pela Lei Divina – que prega a igualdade absoluta de todos os seres, fundamento da imutável e eterna Lei Natural. Embora esse princípio esteja explícito na questão “803”, ele se evidencia de forma verossímil na questão “92”, a qual, estruturada com base nas Leis da Física, rege os processos de desenvolvimento desde o “átomo” até o “arcanjo”. A potencialidade e o poder de irradiação da Alma acompanham seu estado de pureza, definindo seu grau de desenvolvimento.
Posto que o Homem seja um Espírito igual aos que o assediam
Se o Homem é, de fato, um Espírito equivalente àqueles que o influenciam, ele passa a ser simultaneamente causa e efeito de si mesmo – agente e paciente nas relações com seus semelhantes, encarnados ou desencarnados – sujeitos às influências conforme a escala de valores intelectuais e morais que os conectam. Em uma cadeia evolutiva interminável, onde cada elo possui graduações psíquicas próximas, os Espíritos se encontram interligados simetricamente, formando uma rede de conexões mútuas (conforme o item “459”).
Prosseguindo, nos itens “122a” e “122b” extrai-se que dos Espíritos imperfeitos que procuram dominá-lo, vale a representação de Satanás, o qual acompanha o Espírito até que este adquira domínio sobre si mesmo, fazendo com que os maus desistam de obsediá-lo. No entanto, seguindo a mesma lógica exposta anteriormente, se um homem conseguir se libertar da influência maligna, os maus, desprovidos de sua vítima, buscarão novas presas. Em um ciclo sem fim, os Espíritos perversos, em sua insaciável sede de dominação, jamais progrediriam, permanecendo destinados eternamente ao Mal.
A conclusão, portanto, é clara: essa doutrina é injusta – caberia, talvez, ao Cristianismo e a suas vertentes, mas nada tem a ver com o Espiritismo.
O Bem e o Mal, absolutos
No item “124”, Kardec pergunta: “Havendo Espíritos que, desde o princípio, seguem o caminho do bem absoluto e outros o do mal absoluto, haverá gradações, sem dúvida, entre esses dois extremos?” Como resposta, consta: “Sim, por certo, e constituem a grande maioria”.
Na realidade, ao formular essa pergunta Kardec já afirmava, por meio de uma resposta implícita, que existem seres privilegiados que, desde o instante de sua criação, trilham o caminho do bem “absoluto”, enquanto outros seguem o do mal “absoluto”. Essa visão remete à doutrina da graça e da predestinação, na qual Deus concede regalias a alguns – marcando-os como filhos diletos – enquanto ignora os desfavorecidos, que, segundo essa lógica, seriam condenados a sofrer intensas provas para, eventualmente, alcançar o Céu. Assim, o próprio Deus, segundo esse pensamento, derogaria as leis de justiça e igualdade absoluta.
Não obstante o elevado grau do Espírito de Kardec, como ser humano ele poderia ter feito tal pergunta. Entretanto, o Espírito Verdade, o qual lhe seria superior, deveria ter contestado a existência de Espíritos seguidores do bem ou do mal absoluto desde o princípio. Caso o Espírito Verdade tivesse respondido, sua limitação em conhecimentos seria revelada – ou, alternativamente, ele teria se mantido em silêncio, consentindo com a conclusão de Kardec.
Adiante, na questão “125”, Kardec inquiria se os Espíritos que seguiram o caminho do mal poderiam alcançar o mesmo grau de superioridade dos demais, respondendo: “Sim, mas as eternidades serão mais longas para eles”.
Para debater essas questões, é necessário definir os termos “princípio” e “absoluto”. Etimologicamente, “princípio” indica o instante em que algo começa a existir – antes dele, tal coisa, pessoa ou fato não existia. Já “absoluto” remete à ideia de algo pleno, completo, sem espaço para o relativo; neste contexto, denota perfeição suprema, final, que se estabelece em termos de tempo, espaço e condição. Entretanto, atributos como perfeição e inteligência ilimitadas pertencem exclusivamente a Deus, enquanto os Espíritos são criações divinas. Se recuarmos ao momento inicial da Criação – que, por definição, não tem começo – e considerando que Deus continuamente lança novas gerações de Princípios Inteligentes, a frase “as eternidades são mais longas para eles” perde sentido, pois a eternidade não pode ser mensurada.
A Evolução Infinita
A questão “888a” esclarece o encadeamento da evolução infinita: “… Não olvideis jamais que o Espírito, qualquer que seja o seu grau de adiantamento, sua situação como reencarnado ou na erraticidade, está sempre colocado entre um superior que o guia e aperfeiçoa e um inferior perante o qual tem deveres iguais a cumprir”.
Conforme interpretado por Léon Denis, essa escala ascensional compreende planos sucessivos e sobrepostos, nos quais os seres, dotados de estados vibratórios análogos e meios de percepção semelhantes, conseguem se reconhecer mutuamente – embora os seres dos planos superiores permaneçam, por vezes, invisíveis ou incognoscíveis, devido às condições de vida mais sutis e perfeitas desses níveis.
Não é plausível admitir que alguns Espíritos se tornem retardatários e enfrentem dificuldades extremas em seu progresso evolutivo, enquanto outros avançam sem impedimentos e alcançam o “topo” com maior rapidez. Se alguns tropeçarem e caírem, acumulando obstáculos que retardem seu desenvolvimento, isso implicaria que os Espíritos mais jovens, seguindo o caminho do bem, teriam terreno livre e ultrapassariam os “mais velhos” que caíram – fato que os isentaria de provas e expiações, reencarnando apenas para cumprir os desígnios da evolução natural.
A crença de que há Espíritos destinados ao mal absoluto desde a criação viola frontalmente o princípio da isonomia da Lei Divina, pois sem isonomia a igualdade natural (conforme o item “803”) perde seu caráter imutável. Afinal, estamos falando de seres dotados de sentimentos e amor-próprio. Como poderia um recém-nascido possuir noção de livre-arbítrio para escolher, de forma consciente, toda a sua conduta? Na óptica da Epistemologia Espírita, o bebê é um Espírito preexistente, já detentor de faculdades desenvolvidas ao longo de um pretérito, mesmo que sua manifestação corpórea seja frágil.
Os Espíritos desde o princípio
No item “127”, após a resposta das Inteligências Invisíveis, Kardec comenta: “(…) Assim como temos homens que são bons e outros que são maus desde a infância, há Espíritos que são bons ou maus desde o princípio, com a diferença capital de que a criança já traz seus instintos formados, enquanto o Espírito, em sua formação, não possui pré-disposição para o mal maior do que para o bem. Ele possui todas as tendências e toma uma direção ou outra em virtude do seu livre-arbítrio”.
Mas faz sentido afirmar que “há Espíritos que são bons ou maus desde o princípio”? Etimologicamente, “o princípio” remete ao começo, à origem. Como na questão “124”, é necessário questionar a que princípio Kardec se refere: seria o instante preciso da individualização de duas Almas a partir do Elemento Inteligente Universal, comparável ao nascimento de crianças, ou o final do estágio animal, quando os Espíritos iniciam a sua jornada na escala hominal?
Na fase atual do planeta, a Terra não marca o início da evolução dos Espíritos, mas já o foi em seu estado primitivo. Movidos intensamente pelos instintos animalizados e por experiências acumuladas em reencarnações nos reinos inferiores, os seres passam inúmeras existências na fase dos hominídeos, apenas iniciando o despertar da razão e a noção do livre-arbítrio à medida que evoluem para o reino humano. Esse processo abrange fases que vão dos australopitecos ao homo habilis, seguido pelo homo erectus, pelo homo sapiens – o chamado “homem das cavernas” – até atingir, finalmente, o homo sapiens sapiens, a humanidade atual. Cada período se estende por eras, em mundos compatíveis com as necessidades de cada estágio, permitindo a assimilação dos aprendizados por meio de experiências compartilhadas entre indivíduos com graus semelhantes de desenvolvimento.
Da mesma forma que nos reinos vegetal e animal, o Princípio Inteligente continua a se autoelaborar na senda do progresso espiritual. Não se pode imaginar que, impelidos apenas pelos instintos primários, Espíritos em fases iniciais, ainda sem o pleno desenvolvimento da razão, sejam capazes de escolher entre tendências opostas com base em um juízo moral elevado, sem jamais cometer o menor erro que os prejudique ou a seus semelhantes.
Se numa população observamos que as pessoas, em sua maioria, não são totalmente boas nem totalmente más – identificando-se, porém, uma minoria de indivíduos maldosos –, seria sensato afirmar que aqueles “ruins” saíram com “defeito de fabricação”, enquanto os “bons” atingiram um padrão de qualidade comparável a uma certificação ISO 9000? Essa visão implica que os Espíritos que optam pelo mal precisariam ser periodicamente submetidos a uma espécie de recall, alimentando a ilusão da “reforma íntima” entre os espíritas religiosos.
A ideia de que alguns Espíritos possam, por milhares de reencarnações, atravessar todas as fases evolutivas sem jamais cometer um deslize e praticar o bem absoluto é não só absurda, mas também contrária ao princípio de isonomia da Lei Divina e à imutabilidade da justiça natural.
É o mesmo caso do Princípio Inteligente que acabou de individualizar-se
Se o Princípio Inteligente se originou a partir do Elemento Inteligente Universal e iniciou sua existência a partir do “ponto zero”, como poderia, nesse instante, já possuir a capacidade para exercer intelecção e discernimento moral, escolhendo instintivamente entre o Bem e o Mal? Segundo essa visão, aquele que, instintivamente, optasse pelo bem nunca manifestaria sentimentos de ódio, permanecendo imune às paixões inferiores – possuindo, assim, sentimentos incondicionalmente puros, mesmo diante de eventuais injustiças. Por outro lado, aquele que instintivamente trilhasse o caminho do mal revelaria uma natureza brutal, conduzida pelos vícios e pelo ressentimento.
Surge, então, a seguinte reflexão: como pode haver a diferença nata de caráter entre duas criaturas recém-individualizadas? Se tais escolhas estivessem inerentes ao momento da criação, como Deus, ao instituir o livre-arbítrio, poderia deixar de conferir a ambos a capacidade de discernir entre o Bem e o Mal? Tal “erro na criação” implicaria que a responsabilidade seria atribuída unicamente a um Deus que, além de imprevidente, demonstraria uma faceta sombria – injustiça e crueldade oculta sob atributoss de perfeição, onisciência e sapiência.
Ao dividir Seus filhos, concedendo regalias a uns e impondo repressões a outros, esse Deus se mostraria discriminador, parcial, hipócrita e, quiçá, sádico – características incompatíveis com a ideia de perfeição divina.
Imagem de wal_172619 por Pixabay

Saint-Clair Lima é um estudioso dedicado do Espiritismo, com mais de 20 anos de vivência na Doutrina. Com sensibilidade e profundo respeito pelos ensinamentos de Allan Kardec, ele criou o blog Amparo Espiritual como um espaço de acolhimento, reflexão e partilha, inspirado por suas próprias experiências e pelo desejo sincero de auxiliar quem busca luz no caminho espiritual.