As vozes dos mortos, por Marcus Braga – Portal Espiritismo com Kardec – ECK

O movimento dos espíritas trouxe a voz de pensadores que são muito diversos e distantes da essência da doutrina. Precisaremos novamente ouvir as “vozes dos mortos” e, também, a “voz do morro”, para resgatar a essência espírita do conhecimento libertador e reflexivo e a raiz social da fraternidade junto aos desvalidos, recompondo as feridas dessa década de assimilação de novas realidades e suas influências, com novas sínteses, lógico-racionais e genuinamente espíritas, diante dessa nova realidade.

Muitos se lembram de Aracy de Almeida (1914-1988) por causa de sua atuação como jurada no emblemático “Show de Calouros”, do Programa Silvio Santos. Mas, poucos sabem que ela foi também uma grande cantora de samba na década de 1950. Neste sentido, os anais da Música Popular Brasileira (MPB) registram uma história interessante sobre a gravação, por Aracy, da canção “A voz do morto”, de um (até então iniciante) Caetano Veloso, em 1968.

Consta que Aracy estava em São Paulo para um evento chamado Bienal do Samba, naquele ano, e lá encontrou Caetano. Com sua personalidade marcante, no meio de um diálogo no qual ela reclamava de só ser lembrada como grande intérprete do compositor Noel Rosa, ela disparou: “Pô, me tratar como Glória nacional pensando que vão me salvar? […] Quero que você faça um samba, porque você é que é o verdadeiro Noel, porque você é violento, você é novo!”

Desse diálogo saiu a música “A voz do morro”, de Zé Keti, também famosa na voz de Geraldo Azevedo que, parodiando o clássico do samba, fez uma crítica aos que, presos ao passado, arrastando o morto, queriam blindar o samba, como glória nacional, de influências novas. Novas, como o próprio Caetano, em uma crítica à visão musical de se ficar preso no passado, em relíquias, negando movimentos como a própria Tropicália.

Mas, Caetanos e Aracys à parte, e o Espiritismo? Esse viveu um período recente bastante complicado, em que se viu – como outros espaços sociais do país – imerso em uma arena de questões políticas partidárias como nunca se viu na sua história, pois mesmo em momentos marcantes da trajetória nacional, não se vê relatos, na imprensa espírita ou nas falas de seus expoentes, de uma contaminação belicosa dessa natureza.

Agora, passado esse período mais agudo, e precisamos falar sobre isso: muitos se desentenderam, alguns outros se afastaram das casas espíritas, e muita decepção permeou as relações… Aos poucos, se busca dar um tom de normalidade, de reflexão em relação a toda uma década em que, sob a influência das chamadas redes sociais, confundiram-se os papéis, associando patrulhamento ideológico, por um lado, com a defesa, nos espaços espíritas, de coisas realmente indefensáveis. Tudo foi colocado numa mesma caixa daquilo que se entendia como espectro ideológico, inclusive o Espiritismo e os seus adeptos.

Voltando a Caetano, o Espiritismo se viu, então, arrastando o morto – de ideias anacrônicas no campo dos direitos humanos e das relações sociais, buscando resgatar as supostas glórias do passado. Glórias estas somente de um particular ponto de vista, sem entender esse mundo novo que se afigura. Sem compreender a essência da mensagem contida nas “vozes dos mortos”, o movimento dos espíritas trouxe a voz de pensadores que são muito diversos e distantes da essência da doutrina. Com isso, foram afastando as pessoas, em especial os mais novos. Esse Espiritismo virou uma coisa de gente conservadora e retrógrada e não algo que soava revolucionário frente à religião dominante, como sempre o Espiritismo originário se posicionou.

Por anos, então, o estudo sério e reflexivo se viu substituído por palestras pasteurizadas e discussões rasas. A prática social se viu substituída por eventos elitizados. A mediunidade e os aspectos científicos, substituídos por uma fixação com aspectos religiosos. Todos eles traços que já vinham sendo apontados há tempos, demostrando a fragilidade de nossos alicerces, que se viram derrubados com um sopro de ideias estranhas, como a casa que se constrói na areia, nas palavras de Jesus.

Sem fundamento e sem identidade, essa superficialidade toda se viu presa fácil de ideias contraditórias e muito, mas muito antagônicas à Filosofia Espírita, dando voz a um velho travestido de novo, com remissão a visões anteriores, até, à própria doutrina de amor contida no evangelho de Jesus. Fomos sendo homogeneizados com a turba ensandecida e, para se preservarem, muitos se recolheram, outros fugiram, e alguns até lutaram, mas foram hostilizados.

Nos vemos hoje catando os cacos de todo esse processo de “pentecostalização” do Espiritismo que, na busca de ser apolítico, arremessou o movimento na direção de uma captura política nunca antes vista, com interpretações enviesadas e recortes que priorizaram agendas consoantes com movimentos políticos das redes sociais, trocando a reflexão pela replicação de conteúdo. A essência do Espiritismo, na voz dos Espíritos, de amor e de conhecimento, se viu permeada por um moralismo conservador e truculento, alterando o ambiente das casas espíritas.

Como a marcante Aracy, é preciso fazer um diagnóstico do cenário e entender o que, nesse mundo novo, precisaremos novamente ouvir as “vozes dos mortos” e, também, a “voz do morro”, para resgatar a essência espírita do conhecimento libertador e reflexivo, mas igualmente a raiz social da fraternidade junto aos desvalidos, recompondo as feridas dessa década de assimilação de novas realidades e suas influências. Tudo, para fazer a reconstrução, não a que siga arrastando o morto, mas que permita o surgimento de novas sínteses, lógico-racionais e genuinamente espíritas, diante dessa nova realidade.

Humildade, bom senso e diálogo figuram como os elementos que serão essenciais nesse resgate que se fará necessário das nossas relações. Não para voltar ao ponto onde estávamos – pois muito aprendizado decorreu de tudo o que passou – mas na busca daquela essência, que é o pensamento de Kardec e o amor de Jesus; e, ainda mais, na formatação de um necessário Espiritismo que efetivamente dialogue com os problemas humanos de nossa época.

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