Espíritas em queda livre: diversas causas, um efeito, e múltiplas preocupações, por Marcelo Henrique e Marcus Braga – Portal Espiritismo com Kardec – ECK

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Marcelo Henrique e Marcus Braga


Para além da mera ilação, padece a preocupação, em relação aos resultados do Censo 2022, não pela redução de adeptos em si, mas pelo que pode estar por trás disso, o que enseja dos espíritas sérios e estudiosos o permanente debate acerca de o que somos, quem somos, o que queremos e como podemos aperfeiçoar nossas ambiências de estudo, trabalho e, principalmente, convivência afetiva e empática de todos.

Nesta primeira sexta-feira de junho, dia 6, os periódicos, sites e portais trouxeram uma notícia derivada do Censo Nacional do IBGE (2022), publicada pela Agência do instituto governamental às 10 horas da manhã. Este é o ponto de partida para as análises.

Vale dizer, ab initio, que o Censo é um levantamento oficial realizado por uma agência especializada da Administração Pública brasileira (Governo Federal), sem similar em território nacional, sendo realizado a cada dez anos desde que o Brasil se tornou uma república (exceto em 1910 e 1930, devido a conturbações políticas).

O que diz o Censo 2022 sobre Religiões

No Censo atual são compilados dados do período 2010–2022, um intervalo de mais de uma década, que apresenta a seguinte conformação tipológica comparativa:

Tipo de Religião (*)Dados 2022 (%)Dados 2010 (%)Diferença (+/-) (%)
Catolicismo65,156,78,4
Neopentecostalismo26,921,65,2
Umbanda/Candomblé1,00,30,7
Espiritismo1,82,2-0,3
Sem Religião Declarada9,37,91,4

(*) O próprio levantamento do IBGE permitia a identificação do Espiritismo como religião para aqueles que assim o consideram.

O quadro demonstra, de forma simbólica, que todos os tipos cresceram, à exceção dos adeptos da “religião espírita”, que apresentaram redução. Esse elemento é o ponto central do artigo.

Espanto ou furor?

Nas primeiras 24 horas após a divulgação dos dados, a notícia causou furor no meio espírita — mais furor do que espanto.

Uma das matérias publicadas logo em seguida, veiculada por um dos maiores portais, destaca, no segmento espiritualista reencarnacionista, a informação de que a parcela de brasileiros que se declaram como praticantes de umbanda ou candomblé triplicou no Brasil, passando de 0,3% para 1%, enquanto o número de espíritas caiu de 2,2% para 1,8% no mesmo período.

A reportagem aponta algumas razões para esse fenômeno. Uma delas, conforme explica a especialista do IBGE, Maria Goreth Santos, é que o crescimento dos adeptos de crenças de matiz africana não decorre de conversões, mas está ligado à maior segurança pessoal e à liberdade para a prática dos cultos afro-brasileiros. Segundo ela, também houve uma redução do medo ou da vergonha de se declarar umbandista ou candomblecista — que, anteriormente, levava muitos a se identificarem mascaradamente como espíritas.

A repercussão dos dados estatísticos nas redes sociais demonstrou grande interesse, com intensos engajamentos e interações, superando inclusive notícias de outros eventos mediúnicos recentes.

Esse furor está intimamente ligado à ideia, repercutida com frequência, de que o número de espíritas estaria crescendo no Brasil, devido à expansão do conhecimento dos princípios da Filosofia Espírita e ao interesse mundial por temas espirituais.

Assim, muitas manifestações foram depreciativas, desqualificando o levantamento governamental ou diminuindo a relevância daqueles que, mesmo frequentando instituições espíritas e consumindo material da doutrina, não se declaravam oficialmente como espíritas.

Existem outras causas para a diminuição dos adeptos espíritas?

É possível aventar outras causas, como os efeitos pós-pandemia, o crescimento do ateísmo, a personificação da religião em figuras representativas, a inclusão de questões não-religiosas ou não-filosóficas nos ambientes religiosos, a insatisfação em relação aos resultados dos atendimentos espirituais, ou o descrédito gerado por alguns personagens ligados a práticas espíritas que cometeram atos ilícitos. Contudo, uma assertividade plena dependeria de um estudo qualitativo com aqueles que deixaram de se identificar como espíritas, o que não é tarefa simples.

Em ciência, dificilmente se delimita uma única causa para um fenômeno; os resultados dependem da amostra analisada, podendo variar em diferentes pesquisas.

A ambiência do Censo

O período de 2010 a 2022 foi marcado por intensas agitações políticas no país, com polarizações e conflitos em que as religiões tiveram envolvimento direto em diversas situações inéditas na história da República. Esse cenário afetou todas as denominações, especialmente o Espiritismo, que enfrentou lutas internas e públicas.

Essa polarização, estabelecida entre duas lideranças políticas, prossegue e promete marcar o cenário político para as próximas eleições, independentemente dos resultados presidenciais.

As polarizações refletem-se tanto nas individualidades quanto nos grupos, mesmo diante da presença de dirigentes, médiuns e escritores claramente ligados a ideologias específicas.

Diagnoses possíveis

Os dados do Censo 2022, que apontam a redução dos adeptos que se declaram espíritas, sugerem o afastamento de muitas pessoas das ambiências presenciais — os centros e templos espíritas com CNPJ. Ainda assim, a não-afirmação no Censo pode refletir também uma desilusão com as interpretações pessoais dos ensinamentos espirituais, que variam de médium a articulista.

Entre a obra originária de Allan Kardec e suas interpretações contemporâneas, há uma distância considerável. Não devemos confundir a Doutrina Espírita com os representantes ou com as interpretações que lhe são atribuídas, nem aceitar cegamente informações provenientes de Espíritos sem passar por um crivo lógico e racional.

O modus operandi da religião espírita

Um passo importante seria a reformulação do modo de operação da religião espírita – possivelmente abandonando a condição de “igreja”, tão marcante na maioria das instituições, caracterizada por uma retórica impositiva e uma doutrinação salvacionista que se apoia no conceito de “reforma íntima”.

Nas instituições e grupos espíritas, os indivíduos são orientados por meio de entrevistas de atendimento fraterno e prédicas – tanto públicas quanto privadas – que, muitas vezes, exercem uma pressão psicológica excessiva. Essa dinâmica gera uma postura externa mascarada ou o afastamento face às cobranças constantes, uma cobrança que não se vê, por exemplo, em ambientes de outras religiões tradicionais.

As obras mediúnicas brasileiras, especialmente os romances psicografados por Francisco Cândido Xavier, plantaram ideias que se afastam dos princípios originais, criando uma interpretação dos “Umbrais” e “Colônias Espirituais” (como “Nosso Lar”) que, em alguns casos, retrata tais ambientes como locais de punição ou detenção, ao invés de espaços de consolação e reeducação.

Kardec tratou dos temas relativos ao “destino” da alma

Na obra originária, questões sobre o destino da alma são abordadas em “O Livro dos Espíritos”, “O Evangelho Segundo o Espiritismo” e, pontualmente, em “O Céu e o Inferno”. De forma resumida, a Filosofia Espírita defende que céu e inferno são estados de espírito – condições psicológicas de cada alma –, não lugares físicos destinados ao gozo ou ao infortúnio eterno.

O movimento espírita contemporâneo adotou, a partir das obras mediúnicas brasileiras, no entanto, a noção de locais circunscritos, como os Umbrais e as Colônias, onde os Espíritos permanecem aguardando nova encarnação.

Originalmente, o Espiritismo era entendido como uma doutrina consoladora, a partir do capítulo “O Cristo Consolador” de “O Evangelho Segundo o Espiritismo”.

Você quer ser consolado?

Imagine saber que, por ser imperfeito, você estaria destinado a um local “inferior” – o Umbral descrito nas obras andreluizianas –, onde o sofrimento seria prolongado até que se pagasse o “débito” do passado. Como se sentiria ao saber que um ente querido, por ter sido considerado imperfeito, teria que “estagiar” nesse mesmo ambiente?

Esse conceito de consolo não nos interessa. Não baseamos nossas lutas diárias na expectativa de um sofrimento contínuo em um ambiente insalubre. Kardec e os Espíritos que se manifestaram em suas obras jamais defenderam uma visão de sofrimento físico como condição eterna dos Espíritos.

Os relatos de sofrimentos morais descritos em “O Céu e o Inferno” referem-se a condições subjetivas, enquanto os sofrimentos físicos fazem parte do psiquismo individual e não de uma realidade imposta.

Assim, muitos espíritas vivem na expectativa de uma vida espiritual futura, fazendo projetos e desejando condições que, na prática, não correspondem a um consolo real.

Ainda outras causas de desalento com o ambiente espírita

Outras causas para o afastamento dos adeptos incluem o desgosto, a decepção, a desilusão e o cansaço diante de um cenário que, além do debate doutrinário, foi marcado por intensas disputas ideológicas.

Observa-se que textos e manifestações orais frequentemente deturpam os conceitos da Doutrina Espírita para validar condutas associadas a preferências político-ideológicas, gerando conflitos e afastando indivíduos que não se identificam com tais distorções.

Além disso, observa-se uma aproximação com tendências mercadológicas e uma postura excessivamente comercial, em que grandes eventos e congressos acabam por privilegiar um público seleto, contrastando com a essência dos centros espíritas de base mais simples.

A pauta conservadora e seus “ismos” e suas “fobias”

Em pautas conservadoras encontram-se diversos “ismos” – como racismo, aporofobia, xenofobia, homofobia e misoginia – além de violência e tortura. Mesmo em ambientes religiosos, essas intransigências podem se manifestar, seja por meio de cancelamentos ou de comportamentos de indiferença mascarada.

Entretanto, a Doutrina Espírita, em sua essência, não se coaduna com essas práticas. É imperativo que os centros e grupos espíritas atuem tanto no sentido repressivo quanto pedagógico para não tolerarem atitudes preconceituosas.

Os agrupamentos religiosos de matiz africana, como Umbanda e Candomblé, exemplificam uma convivência marcada pelo respeito, pela inclusão e pela liberdade identitária, aspectos estes que muitas vezes estão ausentes em centros espíritas mais tradicionais.

A expressão “de mesa branca”, comum nas primeiras décadas do Espiritismo no Brasil, ilustra como certos hábitos, ao mesmo tempo que buscavam diferenciar os ambientes, também reproduziam preconceitos étnico-raciais, os quais não têm lugar na verdadeira compreensão da doutrina.

Voltando ao furor…

A notícia sobre o decréscimo dos espíritas causou um forte rebuliço nas redes sociais, revelando a crença de que o Espiritismo seria a única proposta redentora da humanidade e o único caminho para o esclarecimento espiritual.

Essa visão, fortalecida por interpretações ufanistas e pela missão atribuída ao Brasil como “coração do mundo” e “pátria do evangelho”, alimenta um comportamento proselitista e salvacionista entre aqueles que se dizem espíritas.

O proselitismo, inclusive, já foi desaconselhado pelo próprio Kardec e por outros estudiosos, que ressaltam a importância de falar do Espiritismo de maneira natural, sem imposições ou pressões para converter outrem.

Muitos espíritas chegam a idolatrar líderes ou médiuns a ponto de construir um castelo de ilusão, mas a realidade humana e as quedas inevitáveis acabam por desmascarar tais condutas.

Concluindo, mas não encerrando

Lançar hipóteses para o decréscimo do quantitativo de espíritas no Brasil, conforme apontado pelo Censo 2022, envolve uma série de fatores e contingências. O objetivo é estimular o debate e a reflexão lógica e racional sobre o que somos, quem somos, o que desejamos e como podemos aprimorar nossas ambiências de estudo, trabalho e, sobretudo, de convivência afetiva.

É imprescindível ouvir as vozes daqueles que frequentam os ambientes espíritas para compreender o que os desagrada e os afasta, superando as informações dispersas pelas redes sociais. A notícia do Censo deveria inspirar um compromisso profundo com o debate e a reflexão, a exemplo do que propunha Kardec, para que se possa construir consensos e evitar a repetição de erros passados.


Serviço

Censo IBGE

O Censo Demográfico é uma pesquisa de campo realizada periodicamente com o objetivo de coletar dados sobre a população que habita um determinado território. Através dele, é possível dimensionar o tamanho da população, sua distribuição espacial e outros elementos característicos dos habitantes, seja de forma total ou em recortes específicos (como áreas municipais, distritos e bairros, urbanos ou rurais).

Esse levantamento fornece informações imprescindíveis para a definição de políticas públicas e para a tomada de decisões em investimentos, tanto públicos quanto privados. No Brasil, a responsabilidade do Censo cabe ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), instituído em 1938. Vale lembrar que o primeiro levantamento foi realizado em 1872, na época do Brasil Império, com o intuito de definir, por exemplo, quem era “livre” ou “escravo”.


Imagem free canvas – Pixabay

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