A tradução de obras filosóficas e espirituais
A tradução de obras filosóficas e espirituais é uma tarefa delicada, que exige não apenas domínio linguístico, mas também sensibilidade para capturar nuances simbólicas e culturais. No caso de “O Livro dos Espíritos”, codificado por Allan Kardec em 1857, essa complexidade se torna evidente ao analisarmos como certos termos do original francês foram traduzidos para o português. Um exemplo emblemático é a palavra la bête, que, em francês, carrega uma carga simbólica distinta da simples noção de l’animal. Enquanto la bête – ou “a besta” em português – remete a um estado de embrutecimento e instintividade, “animal” (ou l’animal, em francês) refere-se a uma categoria biológica mais ampla. Essa diferença, aparentemente sutil, pode gerar interpretações divergentes ao longo do tempo, especialmente em uma obra que busca explicar a evolução espiritual do ser.
A palavra “besta” tem sua origem no latim bestia, que designava um animal selvagem ou feroz, como um leão, tigre ou urso, mas também podia ser usada para caracterizar alguém considerado selvagem, brutal ou cruel. Morfologicamente, o termo pode funcionar como substantivo, adjetivo ou interjeição, variando em gênero e número conforme o contexto. Por exemplo, nos costumes romanos, os bestiarii eram gladiadores especializados em combater feras selvagens nas arenas, durante espetáculos conhecidos como venatio. Esses combates, que envolviam animais perigosos, desempenhavam um papel crucial no entretenimento do público, reforçando a ideia de que a referência a “besta” está associada a um estado selvagem, bruto e instintivo, distinto da ampla categoria “animal”, que abrange todos os seres vivos dotados de ânimo.
As naturezas instintiva e espiritual do ser humano
Em “O Livro dos Espíritos”, Allan Kardec utiliza o termo bête(s) para destacar a dualidade entre a natureza instintiva e a espiritual do ser humano. A palavra aparece nove vezes em questões como 148, 599, 604a, 611, 696, 777, 831, 863 e 968. Na questão 599, por exemplo, Kardec pergunta:
“L’âme des bêtes a-t-elle le choix de s’incarner dans un animal plutôt que dans un autre?”
(“A alma das bestas pode escolher encarnar em um animal ao invés de outro?”)
A resposta dos Espíritos – “Non ; elle n’a pas le libre arbitre.” (“Não; ela não tem livre-arbítrio.”) – reforça que, nesse estágio, não é possível que uma alma bruta opte por uma raça ou espécie, assim como ocorre com outros seres vivos que não dispõem desse atributo. Essa resposta destaca a ausência de autonomia e discernimento no estado bête, em contraste com a capacidade humana de evoluir através do livre-arbítrio.
Na tradução para o português, bête(s) foi, frequentemente, traduzida como “animal”, o que diluiu seu sentido simbólico de um estado bruto e instintivo. A questão 599, por exemplo, remete à ideia de espécie como algo mais amplo, abrangendo não apenas o reino animal, mas também o progresso espiritual. Esse tema é complementado por outras questões, como na discussão sobre a origem da raça humana e na explicação sobre a encarnação em diferentes mundos, onde os Espíritos afirmam que os seres precisam revestir matéria em função do grau de pureza alcançado, fator que determina as diferenças entre os mundos percorridos.
O percurso do progresso espiritual
Essas questões reforçam que o progresso espiritual ocorre em diferentes níveis e mundos, com o Espírito assumindo formas materiais adequadas a cada estágio. Um exemplo significativo é a questão 696, na qual os Espíritos respondem à pergunta “Que efeito teria sobre a sociedade humana a abolição do casamento?” com a frase “Le retour à la vie des bêtes” (“Seria uma regressão à vida das bestas”). No comentário, Kardec utiliza o termo “animal” para explicar que, embora haja animais monogâmicos, como algumas espécies dos Psittacidae, estes demonstram comportamentos distintos dos que caracterizam as bêtes. Ele comenta:
“O estado de natureza é o da união livre e fortuita dos sexos. O casamento constitui um dos primeiros atos de progresso nas sociedades humanas, pois estabelece a solidariedade fraterna e se observa entre todos os povos, ainda que em condições diversas. A abolição do casamento seria, portanto, uma regressão à infância da Humanidade, colocando o homem abaixo mesmo de certos animais que lhe dão exemplo de uniões constantes.”
Nesse contexto, fica evidente a distinção que Kardec faz entre bêtes e animaux. Enquanto a “besta” simboliza o instinto bruto presente tanto no animal quanto no homem em seu estado inicial, o “animal” está associado exclusivamente ao reino material. Assim, o conceito de bête remete a um estágio primitivo e instintivo que o ser humano possui, mas do qual é capaz de se elevar ao exercer o livre-arbítrio, desenvolvendo consciência, discernimento e a capacidade de escolha – elementos essenciais para o progresso espiritual.
A contribuição do tradutor Herculano
No prefácio de sua tradução de “O Livro dos Espíritos”, Herculano Pires apresenta uma reflexão que ressalta a transformação da figura linguística. Ele cita Hegel, que, em suas lições de estética, menciona as “criações monstruosas” da arte oriental – figuras gigantescas, com duas cabeças e múltiplos braços e pernas –, como uma expressão inicial da tentativa do Belo de dominar a matéria e se expressar por meio dela. Conforme Herculano, a matéria grosseira resiste ao ideal, desfigurando-o, mas é eventualmente dominada, dando lugar às formas equilibradas e harmoniosas da arte clássica. Mesmo quando esse equilíbrio máximo é atingido, o Belo rompe com ele nas formas românticas e modernas, buscando superar o instrumento material para se expressar de modo mais livre.
Ao comentar sobre as primeiras manifestações artísticas da humanidade, Herculano descreve essas criações “monstruosas” como reflexos do embate entre o ideal e a resistência da matéria. Essa metáfora ilustra o confronto entre o Espírito e a bête, demonstrando como o instinto bruto é moldado até que o ideal se manifeste em harmonia. Tanto na arte quanto no progresso espiritual, o esforço contínuo do Espírito para transcender a resistência material e afirmar seu poder de escolha é fundamental para alcançar o equilíbrio e a transcendência.
Traduttore, traditore?
A tradução de bête como “besta” ou “bruto” preservaria a ideia de um estado embrutecido e instintivo, diferenciado da noção mais ampla de “animal”. A falta de notas explicativas ou de uma tradução mais literal compromete a fidelidade à mensagem dos Espíritos. Essa crítica não desmerece o trabalho dos tradutores, que foi essencial para a difusão do Espiritismo, mas ressalta a importância de que futuras traduções sejam mais atentas às nuances simbólicas da obra.
Em “O Livro dos Espíritos”, cada palavra carrega um peso filosófico que merece ser preservado, especialmente quando se trata da dualidade entre instinto e razão. A inclusão de notas explicativas ou a escolha por termos como “besta” e “bruto” ajudaria a manter a fidelidade ao pensamento de Kardec, evitando distorções na interpretação da obra.
Em um mundo globalizado, a tradução deve ser vista não apenas como uma transposição de palavras, mas como uma ponte entre mundos simbólicos. Cuidar para que nada se perca no caminho é, acima de tudo, um ato de respeito com os autores e com os leitores que buscam, nas páginas de uma obra, respostas para suas inquietações mais profundas.
Fontes:
- KARDEC, Allan. “O Livro dos Espíritos”. Trad. J. Herculano Pires. São Paulo: Edicel, 2016.
- KARDEC, Allan. “Le livre des Esprits”. Éditions Vivre, Ensemble, 2015. Versão digital.

Saint-Clair Lima é um estudioso dedicado do Espiritismo, com mais de 20 anos de vivência na Doutrina. Com sensibilidade e profundo respeito pelos ensinamentos de Allan Kardec, ele criou o blog Amparo Espiritual como um espaço de acolhimento, reflexão e partilha, inspirado por suas próprias experiências e pelo desejo sincero de auxiliar quem busca luz no caminho espiritual.