Delírios não são realidades. Cancelamentos não são liberdade de opinião. Prepotência não coexiste com equidade. Violências devem ser necessariamente combatidas e há que se cultuar o respeito pelo outro enquanto pessoa humana.
O cenário da instantaneidade virtual – em que tudo se consome em poucos segundos (ou minutos), mas pode se estender, como temática, por tempos indefinidos – tem o seu novo mote: os bebês “reborn”.
A interrogação acima remete ao contexto do irreal, imaginário ou fictício, o qual pode se sobrepor à realidade existencial, a partir do uso que fazemos de objetos e/ou circunstâncias.
Meses atrás, um colega de trabalho relatou uma situação vivida com parentes, especialmente envolvendo uma tia. O casal, que teve uma filha de 23 anos, sofreu uma grande perda após um acidente fatal. Mesmo com a filha ausente, a tia mantinha o quarto dela intacto, preservando todos os pertences. Diariamente, ela cuidava do ambiente, lavando roupas mesmo que estivessem limpas e arrumando a cama repetidamente, como se aguardasse o retorno da filha a qualquer momento.
Carências de sempre, revisitadas
Hoje, vivenciamos um contexto peculiar que precisa ser analisado sem a pressa de julgamentos sumários, principalmente quando tais comportamentos se distanciam dos padrões de “normalidade”.
Há muitas carências na atualidade, que nem sempre estão associadas à perda de pessoas queridas. Embora nossas percepções e análises – inclusive as de especialistas em mente humana – possam ser incompletas e distantes de generalizações, é necessário reconhecer a diversidade dos rompimentos e anarquias que se manifestam nos comportamentos humanos.
Entendendo as bonecas “reborn”
As bonecas “reborn”, termo derivado do inglês “renascido”, existem desde os anos 2000, mas hoje estão cada vez mais ultrarrealistas, imitando bebês recém-nascidos. Durante a pandemia e o consequente isolamento social, elas alcançaram grande popularidade e, em 2021, foram destaque em um programa da Rede Globo.
Inicialmente, essas bonecas remetiam ao primeiro brinquedo de muitas meninas, despertando o encantamento pela maternidade. Contudo, casos têm se multiplicado em que adultos passam a tratar esses brinquedos como filhos, alimentando-os, vestindo-os, ninando-os e até simulando consultas médicas – atividades frequentemente registradas em redes sociais.
Na realidade, esses artigos são produtos de luxo, inacessíveis para a maioria, com preços que variam de R$ 750 a R$ 9,5 mil, dependendo dos materiais e da complexidade de sua produção. Os modelos mais sofisticados utilizam silicone sólido, que imita a pele de recém-nascidos, possibilitando a escolha do tom de pele, cor dos olhos e até reproduzindo dobras, unhas e batimentos cardíacos. Há também exemplares que se assemelham a crianças com síndrome de Down. Algumas vendedoras chegam a oferecer “enxovais” completos, com roupas, acessórios, certidão de “nascimento” e cartão de vacinas, compondo um verdadeiro pacote de para-realidade.
Realidade paralela ou brincadeira de adulto?
Especialistas, como psicólogos e terapeutas, enfatizam que não há evidências suficientes para afirmar que todos os “usuários” dessas bonecas vivem em uma realidade paralela ou sofrem de alguma patologia. Cada caso precisa ser investigado a fundo para diferenciar entre um simples hobby – semelhante à coleção de miniaturas, bonecos e carrinhos – e um potencial problema de saúde.
Atividades lúdicas e hobbies, quando praticados equilibradamente, tendem a trazer benefícios psíquicos, promovendo aprendizado e alegria. Há quem veja na infantilização uma forma de terapia. Por exemplo, em uma instituição de acolhimento para idosos, foi registrado o caso de uma senhora que, ao tratar sua boneca como filha, expressava a dor de ter perdido uma filha na juventude. Em certos quadros clínicos, recomendações terapêuticas podem incluir o uso de bonecas, mesmo quando associadas a enfermidades como ansiedade, depressão, demência ou Alzheimer.
Além disso, comunidades virtuais formadas por entusiastas das bonecas “reborn” evoluem para encontros presenciais em parques e outros espaços, promovendo interação social e senso de pertencimento. Contudo, quando a prática ultrapassa o limite do hobby e passa a ser encarada como a existência de um ser humano, podem surgir diagnósticos de enfermidades mentais.
Furar a bolha
Dados do Google Trends apontam que, nos últimos cinco anos, o Brasil lidera o interesse global por bebês “reborn”, demonstrando a relevância do tema em nosso país e nas arenas virtuais.
A repercussão midiática impõe cautela quanto ao “modus operandi” de certos indivíduos que monetizam suas práticas e redes, atraindo um público faminto por novidades – muitas vezes disseminando inverdades e falácias. Diversos vídeos com elevado engajamento se revelam narrativas fictícias, que, ao se tornarem virais, rompem bolhas de opinião e se transformam em assuntos de utilidade pública, ainda que de forma artificial.
A interpretação literal e a tomada de posição
Em tempos de polarização e maniqueísmo, a divulgação de notícias – sejam elas reais ou fictícias – deve ser pautada pelo equilíbrio e bom senso. Observa-se a tendência de debates acalorados que, muitas vezes, desembocam em julgamentos sumários e cancelamentos, práticas que podem causar agressões físicas e psicológicas.
É fundamental exercer cautela diante de opiniões extremadas e reações exageradas nas redes sociais, sobretudo quando estas se voltam contra grupos “adeptos” de determinada prática. Alguns produtores de bonecas relatam que seu público consumidor ideal seria composto por crianças, embora existam registros de um expressivo número de adultos adquirindo esses itens, sobretudo em redes como o Instagram.
A questão já chegou aos parlamentos, com propostas de lei que visam tanto proibir quanto punir aqueles que demandam atendimento de saúde especial para os bebês “reborn” ou que tentam obter benefícios legais, seja em repartições públicas, estabelecimentos comerciais ou meios de transporte. Propostas também contemplam a atenção psicossocial para os “dependentes” desse hobby.
Repercussões necessárias ou não
A contemporaneidade, com a facilidade na difusão de informações – muitas vezes distantes da realidade – tem estimulado o julgamento e a condenação quase imediatos, sem que haja oportunidade para o contraditório e uma ampla defesa. Essa dinâmica, alavancada pelas redes sociais, pode evoluir para conflitos presenciais e violências psicológicas.
Em um ambiente marcado pelo maniqueísmo, as pessoas tendem a reafirmar seus vínculos com determinadas temáticas, aprofundando divisões que alimentam a cultura do “nós contra eles”. Tal postura impacta a liberdade de expressão e institui uma cultura do medo, especialmente quando se trata da discussão sobre maternidade e das condições da mulher.
Diante de um público que muitas vezes tem dificuldade em discernir entre o verdadeiro e o falso, entre o real e o irreal, torna-se urgente a criação de regulamentações específicas para a internet e a responsabilização tanto de quem cria quanto de quem dissemina informações inverídicas.
Delírios não são realidades. Cancelamentos não são liberdade de opinião. Prepotência não coexiste com equidade. Violências devem ser necessariamente combatidas e há que se cultuar o respeito pelo outro enquanto pessoa humana.
Esta é a polêmica da vez. Adiante, outras surgirão. Entretanto, enquanto essas discussões permeiam nosso cotidiano, é essencial que a voz dos que pregam a compreensão e o respeito prevaleça – como nos ensina “O livro dos Espíritos”, item 932.
Referências
- Agência Estado. “A moda do bebê reborn: hobby ou problema de saúde?”. Disponível em: noticias.uol.com.br. Acesso em 15 mai 2025.
- Castro, G. “O que é um bebê reborn? Entenda polêmica que tem crescido nas redes sociais”. Disponível em: estadao.com.br. Acesso em 16 mai 2025.
- Cavalcante, G. “Febre de bebês reborn é patológica? Como passado e tecnologias explicam”. Disponível em: midiamax.uol.com.br. Acesso em 15 mai 2025.
- Dunker, C. “Febre de bebês reborn é patológica? Como passado e tecnologias explicam”. Disponível em: uol.com.br. Acesso em 15 mai 2025.
- Fava, B. “Brasil lidera interesse por bebê reborn no mundo – e perguntas inusitadas bombam no Google”. Disponível em: band.com.br. Acesso em 15 mai 2025.
- Lemos, N. “Mania dos bebês reborn: vale tudo para viralizar”. Disponível em: dw.com. Acesso em 15 mai 2025.
- Macedo, V. “Por que mulheres são criticadas por ter bebês reborn, e o que isso diz sobre a maternidade”. Disponível em: folha.uol.com.br. Acesso em 16 mai 2025.
- Redação. “Padre diz que não batizará bebês reborn e viraliza”. Disponível em: noticias.uol.com.br. Acesso em 15 mai 2025.
- Souza, A. “Após viralizarem, mulheres defendem ter bebês reborn como hobby: ‘Não somos doidas’”. Disponível em: folha.uol.com.br. Acesso em 15 mai 2025.

Saint-Clair Lima é um estudioso dedicado do Espiritismo, com mais de 20 anos de vivência na Doutrina. Com sensibilidade e profundo respeito pelos ensinamentos de Allan Kardec, ele criou o blog Amparo Espiritual como um espaço de acolhimento, reflexão e partilha, inspirado por suas próprias experiências e pelo desejo sincero de auxiliar quem busca luz no caminho espiritual.